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Os riscos da medicalização da vida

  • Foto do escritor: Demi Simão
    Demi Simão
  • 8 de mai. de 2024
  • 6 min de leitura

Atualizado: 16 de mai. de 2024

Os efeitos colaterais incapacidade de lidar com a dor e o sofrimento


A música sertaneja brasileira possui letras com histórias muito comuns: a maioria diz respeito a desilusões amorosas. Os cantores, no desejo de curar as dores do coração e matar a saudade da pessoa amada, compõem músicas apaixonadas que “rasgam a alma” de seus fãs, muitos dos quais sofrem as mesmas dores da paixão. E muitos, como Jorge e Mateus, dizem em suas canções: “preciso de um remédio que cure essa saudade”, ou como Rionegro e Solimões que já entenderam que “o remédio é beber”, embora os efeitos desse remédio não seja dos melhores... 


Há muitas situações em que adoraríamos que houvesse um remédio de efeito imediato para curar as dores da vida, tanto as que afligem o corpo quanto a as que assolam a mente. O famoso escritor Aldous Huxley (1894-1963) em sua obra Admirável Mundo Novo de 1932 idealizou uma sociedade futurista fictícia em que havia uma pílula, o soma, que as pessoas tomavam e se esqueciam das tristezas e angústias da vida, e ficavam organicamente satisfeitas e cheias de prazer. A depender do que afligia o sujeito, duas ou três pílulas de soma seriam suficientes para aplacar a angústia e arrefecer qualquer tipo de dor psíquica. A pílula era universalmente acessível e era produto de primeira necessidade para o consumo humano. Afinal, quem deseja sentir dor, adoecer ou sofrer? 


Ao longo da história humana, as civilizações foram descobrindo os efeitos das plantas e sua função na cura de doenças, no tratamento de enfermidades e no prazer orgânico que suas substâncias podiam gerar. O cultivo e manuseio de ervas medicinais já teve seus paradoxos na História, sendo tão valorizado a ponto de ser considerado como um dom celeste, cujo manipulador era possuído dos atributos de divindade e merecedor do respeito coletivo, ou sendo tão desprezado de tal forma que seus manipuladores eram acusados de pacto com o diabo, merecedores do castigo da fogueira e do escárnio social. 


Já no século atual, o contraste é outro. A evolução tecnológica e nas ciências da saúde possibilitou a descoberta de remédios para quase todo tipo de enfermidade. Quando surge uma nova doença, como nos casos das doenças infectocontagiosas ou das doenças raras, desejamos ardentemente a criação de um novo medicamento para curar tal malefício. E é absolutamente normal que queiramos ser curados das mazelas que nos afligem a fim de ter uma vida saudável e produtiva. Entretanto, o leque de opções de medicamentos existentes atualmente nos colocam diante de um cenário preocupante: o do uso exagerado de remédios e a medicalização da vida. 


Um ponto importante precisa ser melhor entendido, que é a diferenciação entre medicação e medicalização. Medicação se refere à administração de fármaco/remédio para enfermidade diagnosticada por conhecimentos médicos. A Medicalização diz respeito à indicação de fármacos para problemas cuja causa não se conhece, de ordem psicológica e/ou social ou para o uso indiscriminado de remédios em diversas situações da vida cotidiana. Ela pode se dar tanto pela indicação médica de remédios que na verdade não curam doenças de ordem psicológica ou dos consumidores que fazem autodiagnósticos e fazem uso de remédios que consideram mais eficientes para si mesmos, independente da enfermidade. Parece até o mesmo um antigo ditado: “de médico e louco, todo mundo tem um pouco”. 


Pense por um instante: Quantos remédios você toma frequentemente? Qual a quantidade média de cápsulas você ingere ao longo do mês? Você sabe quais são suas composições químicas e quais os reais efeitos no organismo? É possível que não… Muitos de nós fazemos uso de medicamentos mediante prescrição médica, seja para tratar alguma doença de duração temporária como uma gripe, uma fratura, uma infecção, seja para tratar aquelas de duração prolongada, como o diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares ou doenças congênitas. Contudo, quem nunca decidiu ir à farmácia por conta própria e comprar alguns remédios para dor muscular, dor de cabeça, ansiedade, gripe, para emagrecer, para tratar mal-estar estomacal e diversas outras queixas? 


Ao percebermos o que se esconde por trás disso, nos damos conta de uma realidade multifacetada e complexa. Primeiro podemos pensar no imaginário social de que “não temos que sofrer”. Evidentemente, não queremos sofrer nem sentir dor deliberadamente, por livre vontade. Contudo, o discurso coletivo apresenta a noção de que qualquer tipo de incômodo deve ser eliminado e não pode haver nada que abale nossa sensação de bem estar. As preocupações da vida, nessa visão, podem ser acalmadas com ansiolíticos, as desilusões existenciais podem ser tratadas com antidepressivos, o cansaço do dia pede um paracetamol, um dorflex ou um tylenol. Quaisquer outros incômodos devem ser prontamente eliminados por algum fármaco. 


O que isso evidencia, portanto, é a nossa incapacidade de lidar com a vida na sua realidade própria, marcada por situações adversas e que naturalmente geram desconforto, porque, afinal, não há mundo ideal de plena satisfação corporal e mental. E assim, impõe-se a noção de que quase tudo na vida pode ser tratado com um medicamento. 


Além disso, há o imaginário de que tudo que é diferente deve ser tratado com um remédio. Grande exemplo disso é o comportamento das crianças. Até alguns anos atrás, as crianças muito agitadas eram apenas “crianças levadas”. Hoje são crianças com TDAH - Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. O Transtorno existe sim, e as pesquisas a respeito dele e os manuais de psiquiatria descrevem sua etiologia e seus sintomas, demonstrando que ele é um transtorno neurobiológico de causas genéticas que gera dificuldade de foco da atenção e comportamentos hiperativos. Mas a maioria das crianças atuais são portadores dessa síndrome? 


O que estudiosos do assunto apontam é que a mudança social nas famílias, a necessidade dos pais saírem de casa para trabalhar, o tamanho cada vez menor das casas e a ausência de companhia e atividades para a criança brincar geram nos seus cuidadores e professores maior sensação de exaustão diante de tanta energia que as crianças dispõem. Assim, fica mais fácil o diagnóstico dado muitas vezes por pais e professores - nem sempre com suporte de equipe médica e psicológica especializada - de que a criança possui TDAH e precisa fazer uso de Ritalina. 


A Ritalina, na verdade, atua como um estimulante do sistema nervoso central, potencializando a ação de duas substâncias cerebrais: a noradrenalina e a dopamina, o que deixa a criança mais quieta e concentrada. Entretanto, seu uso indiscriminado e sem adequado acompanhamento médico pode gerar diversos efeitos colaterais, tais como dependência física ou psíquica para o resto da vida. O Brasil é o segundo país que mais consome a Ritalina no mundo, ficando atrás dos Estados Unidos. O mal que as crianças usuárias desse remédio sofrem é “o mal de serem crianças”. 


Em terceiro lugar podemos citar todo o marketing feito pela indústria farmacêutica e as grandes redes de drogarias existentes em nossas cidades. A indústria farmacêutica é uma das que mais gera lucro no mundo, estando quase que blindada diante de recessões econômicas. Alguns estudos apontam que a Indústria farmacêutica está mais interessada em tratar sintomas do que curar doenças e negligencia alguns tipos de doenças que não estão propensas a gerar muito lucro. Verdade ou não, é certo que muito dinheiro circula ao redor dos remédios. As drogarias se proliferam cada vez mais nas cidades, os remédios são anunciados em horários nobres da TV e os preços dos fármacos ficam cada vez maiores. Dia após dia as pessoas são mais atraídas ao consumo de remédios.


Algo que deve ser muito bem considerado por parte dos usuários de medicamentos, sejam eles quais forem, são os efeitos colaterais que geram. Ocorre, por vezes, que um remédio causa algum tipo de efeito colateral em que se faz necessário o uso de outro remédio para tratar o efeito colateral do primeiro, podendo gerar um ciclo de uso de vários fármacos para tratar de uma mesma doença inicial e as decorrências adversas dos remédios. Junto a isso se inclui a possibilidade de o medicamento gerar dependência no organismo, tornando o usuário um “viciado” no uso do remédio.


Além disso, nem tudo pode ser tratado pela via de um remédio. A ciência, a arte, a filosofia e a religião apontam diversos outros caminhos para lidar com as dores do corpo e da mente. A psicanálise oferece aos sujeitos a palavra como forma de lidar com a angústia da existência, para tratar de seus sintomas e não apenas tentar eliminá-los, mas aprender a conviver com eles. Diversos sintomas presentes no corpo são decorrentes de processos psicossomáticos em que sofrimentos no campo psíquico afetam o funcionamento do organismo. O tratamento que a psicanálise oferece, como já descrevia Freud, é a cura pela palavra, por meio da análise. Nem tudo na vida pode ter remédio, como já apontam nossos cantores sertanejos, mas para muitas coisas existe tratamento, seja ele médico, psicológico ou social. 


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